segunda-feira, 10 de junho de 2013

#1cartaporfavor : Wagner Lucena

Tenho pena do fotógrafo, que ao fotografar um índio fez valer-lhe a profecia e roubou-lhe a alma dos olhos. Do bêbado cujas manhãs são assombradas pelo fantasma escaldante. Da menina que olha pela janela os homens de guarda-chuvas sem pular o parapeito. Da voz que faz suspender no ar, somente por segundos, os sentimentos que nos atormentam por toda a vida. Das cores solitárias que enfeitam as cestas de plástico dos corações paulocoelhianos. Destas palavras repetitivas, perdidas entre si mesmas e das palavras que ainda surgirão, dos ciclos e das involuntárias marés. Das palavras que são obrigadas a portar o sentido e o som de si mesmas, como as escritas na Internet. Dos sabores das bebidas guardadas em prateleiras. Dos olhares espasmódicos em corredores. Da luz negra dos cinemas. Das rosas de papelão, dos calendários solares, das professorinhas que acreditam, de Maria Callas abandonada em um navio, cantando para marinheiros. De Keep Cooler sabor pêssego, tenho particularmente muita pena. Tenho pena dos bicos dos sapatos no metrô lotado daquelas manhãs de trabalho, e dos saltos altos lustrosos também nas tardes de happy hour. Das espinhas espremidas contra espelhos adolescentes, dos beijos adolescentes nos espelhos e dos olhos luminosos adolescentes que espelham. Tenho pena das cutículas assassinadas, dos cabelos penteados e das sobrancelhas decapitadas. Tenho pena que quem usa a realidade como o milagre da ilusão, de quem vê tudo que quer, de quem respira de vez em quando e de quem não tem coragem de encher os bolsos de pedras. Da vela que derrete e da que nunca foi acesa. Das caixas de fósforos com 52 palitos, emparelhadas em cinqüenta e dois pacotes, dispostos em cinqüenta e duas prateleiras de cinqüenta e duas estantes, em cinqüenta e duas salas, num prédio de cinqüenta e dois andares. Cinqüenta e dois é o número de semanas de um ano, cada uma com cinqüenta e duas penas minhas. Também tenho pena da janela pequena e do pouco vento que passa por ela para refrescar o ar já tão cheio de penas. Tenho pena de você que espera que eu deixe escovar meus cabelos, minhas crinas, meus anseios, minhas patas e meu estalado.

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